A mulher das células imortais: Quem foi Henrietta Lacks e qual seu legado para o avanço da ciência do século XX?
- stemparaminas
- 6 de mai.
- 7 min de leitura

Muitas pessoas sonham com a possibilidade de viver para sempre, sonho esse que já se fez presente em livros de fantasia - na saga Harry Potter, o vilão Lord Voldemort buscava a imortalidade através de feitiços e crimes hediondos a fim de alcançar seu objetivo - e também na realidade, onde muitos cientistas buscam compreender melhor os processos biológicos do envelhecimento com o objetivo de desenvolver mais tratamentos para trazer uma qualidade de vida melhor para a população.
Em 1951, uma mulher negra descendente de escravizados chamada Henrietta Lacks foi diagnosticada com câncer de colo do útero no Hospital Johns Hopkins, nos Estados Unidos. Após uma biópsia sem autorização realizada pela equipe médica do hospital, foi constatado pelo Dr. George Gey que suas células eram diferentes de todas as outras analisadas antes. Ao contrário do que se esperava, as células de Henrietta não morriam em 24 horas, mas continuam se multiplicando cada vez mais, tornando-se as primeiras a sobreviver in vitro. Em outubro do mesmo ano, Henrietta morreu aos 31 anos, deixando 5 filhos e o marido David Lacks.
As células HeLa (pronuncia-se Rila), como ficaram conhecidas, já viveram mais tempo fora do corpo de Henrietta do que dentro dele. Graças a elas, foi possível o desenvolvimento da vacina contra a poliomielite que era uma das doenças virais mais mortais do mundo, salvando muitas vidas até hoje (todo mundo no Brasil já tomou a vacina, quem não conhece o Zé Gotinha e as campanhas do Ministério da Saúde para população vacinar crianças de até 5 anos?). Além disso, contribuiu para o início mapeamento do genoma humano, que possibilitou o Projeto Genoma Humano finalizado em 2003. Outra contribuição importante foi o desenvolvimento do campo da virologia. Através das células de Henrietta, foi possível avanços em muitos estudos sobre as mais variadas doenças causadas por vírus, como HPV, HIV e a mais recente, a COVID-19. Doenças como tuberculose salmonela também passaram a ter tratamentos graças a elas.

Outras áreas da ciência também fizeram uso das células HeLa, por exemplo, elas foram aplicadas para testes sobre impactos da radiação no organismo. Durante a Guerra Fria, já foram enviadas ao espaço para estudar o efeito da gravidade no corpo de astronautas e assim, também ajudou a enviar o homem à Lua. Muitos recursos e tratamentos que temos disponíveis hoje em dia são graças às células de Henrietta.
E, obviamente, os estudos sobre câncer foram muito beneficiados, permitindo que os médicos encontrassem novas formas de tratamento, como a quimioterapia, que consiste em um tratamento à base de medicamentos para destruir as células cancerosas. Contudo, mulheres negras e pobres têm 44% mais chances de desenvolverem câncer de colo de útero e países africanos são os que possuem maiores índices da doença. Atualmente no Brasil, o SUS oferece a vacina gratuitamente.
Como as células HeLa podem ser imortais?
As células normais possuem telômeros, estruturas que têm a função de proteger o material genético que vai ser transportado. A origem do nome é grega e significa “parte final” justamente por estarem localizadas nas extremidades dos cromossomos. À medida que envelhecemos e as nossas células vão se dividindo e multiplicando, os telômeros vão diminuindo de tamanho e causam o que chamamos de envelhecimento celular ou senescência. A senescência celular faz com que as células não sejam mais capazes de se dividir, provocando a perda de suas funções e desencadeando doenças, como a arteriosclerose. Entretanto, a senescência tem suas vantagens ao evitar muitas outras doenças,entre elas, o câncer, ao inibir o crescimento tumoral.

Reparação histórica
Em 1973, a família Lacks tomou conhecimento sobre o que fizeram com as células de Henrietta porque foram procurados por uma equipe de geneticistas que buscavam a cura do câncer e acreditavam que poderiam obter isso por meio da manipulação genética. A partir de então, a família de Henrietta passou a batalhar pelos direitos legais sobre as células de HeLa, uma vez que laboratórios do mundo inteiro lucraram milhões às suas custas e sem o seu consentimento, além de lutarem pelo reconhecimento de sua contribuição para a ciência. Em agosto de 2023, a família e a empresa Thermo Fisher que foi a responsável por utilizar as células chegaram a um acordo confidencial e benéfico para ambas as partes.
No ano de 2021, a família Lacks recebeu da Organização Mundial de Saúde (OMS) uma homenagem póstuma pelo seu legado deixado na ciência que foi ignorado por tantos anos. De acordo com Tedros Adhanom Ghebreyesus, primeira pessoa negra e do continente africano a presidir a OMS, “ao homenagear Henrietta Lacks, a OMS reconhece a importância de levar em conta as injustiças científicas do passado e promover a igualdade racial na saúde e na ciência” e “uma oportunidade de reconhecer as mulheres, especialmente as mulheres de cor, que fizeram contribuições incríveis, mas muitas vezes nunca vistas, para a ciência médica”.

Essas reparações históricas são de suma importância porque vivemos em uma sociedade que lucrou por mais de três séculos com a escravidão e o tráfico de pessoas negras trazidas à força da África e suas consequências estão enraizadas em nossas vidas mesmo após sua abolição nos mais diversos setores, inclusive na ciência já que, por muitos anos, a informação que Henrietta era negra foi ocultada, tornando sua história praticamente desconhecida do público.
Na época em que fazia seu tratamento, em 1951, nos Estados Unidos vigorava as Leis de Segregação Racial (Jim Crow) e o Hospital Johns Hopkins era um dos poucos que tratavam pessoas negras pobres, então muitos se sentiam tão gratos aos profissionais da saúde que os tratavam que se quer pensavam em contestar qualquer atitude tomada por eles e a equipe sabia disso, se aproveitando de suas figuras de autoridade diante falta de instrução e letramento racial dos pacientes para ocultar fatos importantes e a própria Henrietta foi vítima dessas práticas, uma vez que, não informaram a ela que o tratamento oncológico a deixaria esteril sendo que ela desejava engravidar novamente.

A experiência vivida por Henrietta é um reflexo da mentalidade dos pesquisadores da época que como essas pessoas não pagavam pelo tratamento, doar o seu material biológico era uma forma de ajudar com o avanço da ciência, algo que viola totalmente os princípios básicos de ética em pesquisa porque ter seu material genético retirado sem consentimento é uma forma de invisibilizar sua existência ao renegar seus direitos de decidir inclusive o que fazer com o próprio corpo. E infelizmente, esse não era um fato isolado e ironicamente, foram as células de HeLa que ajudaram a mudar a concepção da bioética em pesquisas com seres humanos.
O médico e pesquisador Chester Southam injetou uma solução contendo células HeLa em 65 detentos de uma prisão em Ohio e como esperado, eles desenvolveram tumores. Southam também fez o mesmo experimento nos hospitais Memorial Hospital Sloan-Kettering e James Ewing Hospital. Ao tomarem ciência do fato, três médicos judeus apresentaram uma denúncia contra e os crueis experimentos foram interrompidos, porque eles sabiam dos horrores cometidos pelos médicos nazistas durante a Segunda Guerra Mundial e que esse horror nunca mais deveria se repetir, a vida e os direitos humanos sempre devem estar acima de qualquer pesquisa científica. A partir desse fato, as normas sobre as pesquisas com seres humanos se tornaram mais rígidas e seguras, visando o respeito à integridade e à vida dos participantes envolvidos nos estudos.
Considerações finais
O debate sobre a vida e o legado de Henrietta Lacks traz à tona muitas questões complexas que ainda precisam ser discutidas em nossa sociedade atual. O fato de ainda as mulheres negras serem as principais vítimas do cancer de útero mesmo que a chave para a cura dessa doenca tenha vindo literalmente de dentro de uma corrobora que nossa sociedade ainda colhe os frutos do racismo ao usurpar e se apropriar de tudo que vem do povo negro sem dar os devidos créditos, mesmo que sejam frutos semeados contra nossa vontade, como as celulas HeLa e os avanços na ginecologia moderna às custas dos experimentos realizados em mulheres negras escravizadas, acontecimentos que ainda muitas pessoas não conhecem.
Falar de Henrietta Lacks é manter vivo seu legado que mesmo após 74 anos de sua morte continua mais vivo que nunca, ela possibilitou e torna possível até hoje avanços importantes que mudaram para sempre a história da humanidade e nos faz refletir quantas mulheres negras ao longo da história tiveram seus feitos apagados ou até roubados por outra pessoa que levou os créditos em cima dos seus trabalhos.
Ainda não foi possível encontrar a fórmula da vida eterna como muitas pessoas sonham, mas acredito que seja possível a cada dia a gente aprender a cultivar nossa própria felicidade apesar do caos em que vivemos, e acredito também na construção de um mundo mais justo e mais digno para todas as pessoas que nela vivem, e ao escrever sobre Henrietta Lacks só consigo ser grata por sua vivência entre nós e por ser mais uma das mulheres negras incríveis que mesmo sem querer, abriram caminhos para que o mundo fosse um pouco melhor e que mais mulheres negras pudessem alcançar o extraordinário. Como disse Alvo Dumbledore, “pode-se encontrar a felicidade mesmo nas horas mais sombrias se a pessoa se lembrar de acender a luz.”, Henrietta Lacks foi e continua sendo luz para a ciência mesmo em tempos sombrios e com certeza continuará sendo por toda a eternidade.
Referências bibliográficas
SKLOOT, Rebecca. A Vida Imortal de Henrietta Lacks. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
BBC NEWS BRASIL. As mulheres escravizadas submetidas a experimentos sangrentos que viraram as 'mães da ginecologia'. BBC News Brasil, 27 fev. 2024. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/articles/ce89zwx8jw9o. Acesso em: 28 fev. 2025.
NAÇÕES UNIDAS BRASIL. OMS homenageia Henrietta Lacks, cujas células mudaram a ciência. Nações Unidas Brasil, 13 out. 2021. Disponível em: https://brasil.un.org/pt-br/151822-oms-homenageia-henrietta-lacks-cujas-c%C3%A9lulas-mudaram-ci%C3%AAncia. Acesso em: 28 fev. 2025.
TECHNOLOGY NETWORKS. HeLa Cells: Key Discoveries and the Science of Their Immortality. Technology Networks, 28 jun. 2018. Disponível em: https://www.technologynetworks.com/cell-science/lists/hela-cells-key-discoveries-and-the-science-of-their-immortality-305036. Acesso em: 28 fev. 2025.
Holt, S. E., & Shay, J. W. (1999). Role of telomerase in cellular proliferation and cancer. Journal of cellular physiology, 180(1), 10–18. https://doi.org/10.1002/(SICI)1097-4652(199907)180:1<10::AID-JCP2>3.0.CO;2-D
GELEDÉS. OMS dá prêmio póstumo a mulher negra que teve células cancerígenas retiradas do corpo sem consentimento. Geledés - Instituto da Mulher Negra, 11 out. 2021. Disponível em: https://geledes.org.br/oms-da-premio-postumo-a-mulher-negra-que-teve-celulas-cancerigenas-retiradas-do-corpo-sem-consentimento/. Acesso em: 28 fev. 2025
Meu primeiro texto 💖
Muito incrível conhecer mulheres que fizeram tanto pela nossa ciência!