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Sem esforço algum

Atualizado: há 5 dias


Autoria de Raescla Oliveira


Uma história de amor não deveria ser um pedido. Uma história de amor é um acontecimento.

Para alguns, um acontecimento recorrente; para outros, um evento dramático e único. Nas duas composições a certeza é a surpresa. Nunca sabemos quando vamos amar alguém. 

Mesmo que às vezes a gente insista que pode fazer algo acontecer, o mundo dos afetos é deslizante e desproporcional. A insistência é a pior das coisas. Se houvesse alguma regra para entender o que é o amor, esta seria: não insistir e, muito menos, se esforçar. 

O amor não é um cargo ou um salário. Mas o discurso meritocrático embala as relações e as convicções no esforço.

Isabel estava crente nesse esforço há 4 anos. Seu namorado lhe dizia constantemente que era preciso se esforçar para que estivessem juntos nas próximas décadas. Não importava o que ele fizesse, tudo era sobre uma suposta falta de esforço de Isabel.

Cansada do esforço, ela foi até um café que inaugurou próximo a sua casa. O local era pequeno, mas os sabores e as texturas eram extremamente atraentes e não necessitavam de esforço algum. 

O espaço brincava com literatura e confeitaria, preparavam doces que homenageavam autores e obras. Uma coisa diferente e suscetível à falência em uma cidade como a nossa querida Manaus, já que, infelizmente, os governantes pouco se preocupam ou ocupam em fomentar o estímulo à literatura.

Quando ela chegou, olhou o lugar com atenção e se deparou com uma placa provocativa para fãs de Harry Potter, como ela. O texto na placa dizia “Não, não temos nada de Harry Potter. Ainda lembramos que J. K. Rowling é transfóbica.”

Ela concordava com a placa, mas não havia desapegado dos livros que leu na adolescência e fazia parte do grupo de fãs que prefere separar a autora da obra. 

Enquanto mirava a placa, a Chef do local saiu da cozinha para cumprimentar os novos clientes que chegavam. Parecia ser algo que ela fazia sempre, como parte da rotina do local.

A Chef foi até Isabel e lhe perguntou:

- Algum espanto?

Isabel respirou fundo, mas não pela placa e muito menos pela pergunta. Estritamente pelo sorriso debochado da Chef Giovanna. Então respondeu:

- Não estou espantada. Só quero doces, porque estou tendo um dia de merda.

A resposta foi um atropelo improvável, a frase parecia não corresponder com as roupas e o estilo aparentemente conservador e tradicional que Isabel exibia ao mundo. Sua saia longa, a camisa de botão, as fivelas em seu longo cabelo liso e os tamancos que lembravam os das senhoras que batem às portas das nossas casas em busca de salvar nossas almas. 

Giovanna sorriu e balançou a cabeça como quem se diverte com uma boa história. E disse que ia procurar desfazer o dia de merda da sua cliente com os melhores doces da cidade.

Isabel ficou sentada olhando para a janela enquanto esperava seu pedido. Jogou o celular na bolsa e evitou as notificações.

O café foi ficando vazio, até que seu pedido chegou e foi entregue pela própria Chef, que se demonstrou entusiasmada para saber um pouco mais sobre o dia de Isabel.

Como quem não queria se esforçar naquele dia, ela colocou naquela mesa com uma Chef desconhecida todas as amarguras do seu relacionamento e as recorrentes cobranças das pessoas ao seu redor por um casamento e até mesmo por filhos.

Tentou explicar que era complicado ter que se esforçar todos os dias para atender as expectativas de tantas pessoas, menos as dela.

Giovanna foi uma ouvinte sem igual, mas o horário foi se estendendo e ela pediu para que Isabel voltasse outro dia.

Isabel saiu leve e determinada a experimentar tudo que Giovanna tocasse.

Na confeitaria, a delicadeza e a atenção aos detalhes é algo imprescindível e de alguma forma Giovanna trazia isso em sua performance no mundo.

Ela era leveza, seu olhar era sereno e sempre parecia disposto a sorrir. O sorriso dos olhos é com certeza um dos mais bonitos. Seus cabelos trançados envoltos em um turbante expressivo com as cores da bandeira LGBTQIAPN+ combinavam perfeitamente com a sua dolmã. 

- “Impossível não se apaixonar”. 

Foi o que Isabel pensou quando chegou em casa. O pensamento não pareceu um esforço. Pareceu mais como um abraço.

Cansada de tantos esforços, Isabel voltou na tarde seguinte ao café. E voltou todos os outros dias daquele outubro chuvoso.

E depois de tantas vezes, de tantas conversas e de nenhum esforço, em um especial de Edgar Allan Poe na Cafeteria, as mãos de Isabel e Giovanna se encontraram.

O beijo de nenhum esforço aconteceu.

E, sem esforço algum, o amor foi ali um acontecimento.


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